1: Uma reflexão sobre o livro young adult “As Vantagens de ser Invisível”

Bárbara Fragalle
9 min readSep 15, 2020

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A heterotopia através de mídiuns e estéticas e a produção cinematográfica como espaço associado, responsável pela atualização do discurso literário

(imagem: http://2.bp.blogspot.com/-TJ52mD5It7U/UVn0QooLIRI/AAAAAAAAAMM/IeM11KovgJA/s1600/perks+of+being+a+wallflower.jpg)

A Ilha dos adolescentes desajustados

As vantagens de ser invisível (título original: The perks of being a wallflower) é um romance epistolar escrito pelo autor norte-americano Stephen Chbosky, publicado em 1999 pela MTV Books, nos EUA. O romance se passa no começo da década de 1990 e é construído através de cartas escritas pelo narrador — Charlie –, um adolescente calouro do colegial, que confia suas descobertas e dilemas a um leitor anônimo, narrando de forma descontraída e ao mesmo tempo íntima, sua relação com a família, a escola, os amigos e os professores.

Em um primeiro momento este pode parecer um enredo adolescente banal, uma vez que retrata o típico high school já tão explorado pela indústria do entretenimento norte-americano, no entanto, As vantagens de ser invisível desemboca num romance com alto teor psicológico, tecido na estrutura de uma narrativa pessoal de forma indireta, que abre discussões sobre os traumas escondidos, a saúde mental na adolescência, a importância das “poucas e boas” amizades sinceras nesse momento da vida e o prazer pela cultura como forma de união e salvamento.

Essa obra young adult faz parte da temática chamada Coming of age — uma história sobre tornar-se adulto, direcionada a um público-alvo no final da adolescência. O fim dos anos 1990 marcou o surgimento dos chamados “romances deprimentes” ou “romances de problemas adolescentes”, experimentações literárias que procuravam focar o lado mais sombrio e não idealizado da experiência adolescente. Além disso, é muito presente no romance a estética da nostalgia, que evoca uma série de elementos culturais underground para dar um tom de deslocamento na narrativa — são mídiuns, que nos termos do filósofo francês Régis Debray constituem suportes que transmitem cultura através de sua materialidade, que em As vantagens de ser Invisível desenvolvem uma importante relação com e entre as personagens.

Na midiologia, “mídio” não significa mídia nem mídium, mas mediações, ou seja, o conjunto dinâmico dos procedimentos e corpos intermédios que se interpõem entre uma produção de signos e uma produção de acontecimentos. […] ou seja, mediações, simultaneamente técnicas, culturais e sociais. (DEBRAY, 1995, pp. 28–29)

Nisso tudo, a obra é retrato de uma adolescência apagada socialmente pela impopularidade e a dificuldade de se relacionar; adolescentes que conseguem se encontrar no prazer por uma cultura e estética alternativa das décadas de 1980 e 1990 — para a época em que o romance foi publicado, essas referências não eram mais tão contemporâneas, caracterizando e envolvendo as personagens numa atmosfera alternativa, cult e vintage, que se conecta ao próprio deslocamento social dos sujeitos na narrativa.

Os vários mídiuns que são representados no romance são a rede de vetores que sensibiliza não só as personagens, mas também os leitores — são o que promove e move as relações de amizade na ficção e o que alicia o jovem leitor na narrativa. Bandas de post-punk das décadas de 1980 e 1990, clássicos da literatura norte-americana, filmes musicais queer, máquinas de escrever e mixtapes de fita cassete são mídiuns que evocam, individualmente, diferentes comunidades discursivas e que, juntos, moldam uma nova comunidade: a dos adolescentes desajustados — que encontra, a partir dessa relação com esses vetores de sensibilidade, amizades importantes, em que tudo isso é válvula de escape de um deslocamento na sociedade. Isso, portanto, acontece em dois planos: no plano da ficção, na vida das personagens, e no plano real, na vida dos leitores adolescentes, que descobrem nesse discurso uma nova forma de se envolver com a realidade, explorando todo um universo cultural.

Um pouco da estética cultuada na obra de Chbosky

Na trama, Charile é muito solitário, mas é notado por Sam e Patrick, irmãos que são veteranos do colegial e que incluem ele em seu grupo de amigos, que não é um grupo popular e está, também, desviado da sociedade, mas onde todos os indivíduos se encontram e se relacionam através das músicas que ouvem, do musical que constroem e atuam e das festas que sediam para eles mesmos — mídiuns que salvam esses adolescentes dos problemas típicos da idade, mas também de traumas como o assédio moral, o abuso e a depressão. Dessa forma, os vetores de sensibilidade estão presentes em espaços de segurança da narrativa e constroem uma atmosfera heterotópica dentro e fora do romance, uma vez que essa comunidade encontra, através desses mídiuns, uma “ilha dos adolescentes desajustados”.

“[…] entre todos esses lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como que contraespaços.” (FOUCAULT, 2013, p. 19–20)

Heterotopia — conceito foucaultiano que descreve um contraespaço, um lugar que é não-lugar dentro da sociedade — , onde no romance todos são amigos e podem ser felizes sem a pressão da popularidade que a sociedade lhes coloca. É notável como a carga psicológica, a temática da impopularidade na adolescência e a noção de que livros, musicas e filmes são mais do que apenas entretenimento na juventude geram adesão de um público jovem que vive às margens dessa hierarquia típica das injustiças do tão retratado high school norte-americano.

Produção cinematográfica: espaço associado e atualização do discurso literário

Na época em que foi publicado, o livro foi bem recebido pelos adolescentes nos EUA e por boa parte da crítica norte-americana, chegando, inclusive, a fazer parte da lista de leitura de algumas escolas de lá (existe uma polêmica envolvida, uma vez que há consumo de drogas e menções indiretas de abuso, estupro e suicídio — como eu disse, não é um clichê adolescente). Em outros países, e, especificamente aqui no Brasil, o livro só ganhou tradução e edição após 8 anos — lançado pelo selo Rocco Jovens Leitores, da editora Rocco, em julho de 2007.

E aqui chegamos em outro ponto importante de reflexão: em 2012 foi feita a produção cinematográfica desse livro, roteirizada e dirigida pelo próprio autor, que contou com atores de grandes franquias young adult como Harry Potter e Percy Jackson. O filme foi bem aclamado pela crítica e conquistou os adolescentes no mundo todo, levando à produção, em diversos países, de novas edições do livro que deu sua origem, incluindo aqui no Brasil onde o livro da Rocco ganhou uma nova cara.

Capa dos livros — edição norte-americana da MTV Books / edição brasileira da Rocco Jovens Leitores. (Imagens: MTV Books / Rocco)

“Elogiado pela crítica e adorado pelos leitores, As vantagens de ser invisível — que foi adaptado para os cinemas com Emma Watson, a Hermione de Harry Potter , e Logan Lerman, de Percy Jackson, no elenco — é o livro de estreia do roteirista Stephen Chbosky. O romance, que já havia vendido mais de 700 mil exemplares nos EUA desde o lançamento, ganhou as principais listas de bestsellers do país em 2012, impulsionado pela adaptação para a telona. No Brasil, não foi diferente. Lançado pela Rocco em 2007, o livro voltou às prateleiras com nova capa e frequentou os principais rankings de vendas por mais de seis meses.” — Editora Rocco (https://www.rocco.com.br/livro/?cod=210)

A popularização da história de Charlie nos Estados Unidos já havia sido marcada pelo livro, no entanto, foi menos lida pelas gerações que vieram depois da década de 2000 e ela definitivamente ganhou outros aspectos e se difundiu mundialmente a partir do filme de 2012, levando o livro ao número 1 do ranking de best sellers mundiais do New York Times na época em que o filme foi lançado. Isso leva a uma reflexão sobre como a produção cinematográfica pode ser também um tipo de espaço associado, como o linguista Dominique Maingueneau aponta: uma retomada do texto que transforma sua aura e a experiência heterotópica — um novo valor foi atribuído a um livro que era popular apenas em seu país de origem e apenas na época em que foi publicado.

“Em Discurso Literário, Maingueneau afirma que é possível considerar o fato literário como discurso, no sentido que a AD confere a esse termo. Isso possibilita restituir “as obras aos espaços que as tornam possíveis, onde elas são produzidas, avaliadas, administradas” (MAINGUENEAU, 2006, p. 43), remetê-las às suas próprias condições de enunciação […] dos papéis vinculados aos gêneros; da relação com o destinatário construída através da obra; dos suportes materiais e dos modos de circulação dos enunciados. Todas essas questões só podem ser abordadas quando se considera o discurso literário como enunciação e como instituição, isto é, como vetor de um posicionamento, como prática discursiva de sujeitos socialmente inscritos em condições históricas de produção de sentidos.” (MUSSALIM, 2018, p. 583)

A partir disso, vemos como a produção hollywoodiana com os arquétipos tão explorados do high school norte-americano populariza essa temática do “não-popular”, levando a uma concepção de que ser “descolado” é ser alternativo, e não o contrário. A estética do Coming of Age alternativo é muito popularizada na indústria cinematográfica, sendo exemplo em filmes aclamados pela crítica como Boyhood, Lady Bird e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho.

Filmes aclamados pela crítica, com a temática Coming of Age. (Imagens: pôsters promocionais)

O filme traz uma grande carga de elementos da cultura vintage e alternativa que o livro retrata, incluindo mais referências culturais dos anos 1980 e 1990, pela possibilidade audiovisual de inserir esses mídiuns o tempo todo na trilha sonora e na fotografia do longa-metragem. A produção transmídia proporciona que uma história ganhe novos significados, se modificando, e essa mudança é bem significativa particularmente porque, se em 1999, ano em que o livro foi publicado, as referências do fim dos anos 1980 e começo dos 1990 já não eram totalmente atuais, em 2012 elas ganham um caráter ainda mais vintage, levando essa “alternatividade” para outro nível.

Com a produção do filme e essa nova popularização da obra literária, esse objeto editorial atualiza as comunidades discursivas que envolve, uma vez que, 13 anos depois da primeira edição do livro, as gerações atuais de adolescentes também se relacionam afetivamente com os mídiuns representados no romance: fitas cassete, máquinas de escrever, The Smiths, David Bowie e Rocky Horror Picture Show são referências que remetem à elementos de uma cultura que está longe de fazer parte do dia a dia dos adolescentes dos anos 2010, que está, portanto, mais deslocada do que anteriormente. Tanto filme quanto livro fazem exatamente isso: buscam renovar e inventar uma geração que interage na heterotopia da “ilha dos adolescentes desajustados”. A relação com esses mídiuns, portanto, se atualiza: são vetores que sensibilizam uma nova geração para uma nova direção, mais vintage, mais alternativa.

Aqui está o trailer do filme (interessante porque mostra a obra como um clichê adolescente, escondendo todas as partes mais “pesadas” do filme)

É importante citar que o filme, de certa forma, convida à leitura do livro, uma vez que referencia literatura, o gosto pela leitura e retrata uma relação especial com as letras, afinal, a escrita é o meio pelo qual o personagem narrador se compreende, relatando sua vida. Ler o próprio livro faz parte dessa experiência desajustada que as personagens vivem na trama. E esses midiuns se inserem o tempo inteiro no próprio discurso, uma vez que as cartas que formam o romance são escritas através da máquina de escrever que tem grande importância afetiva no enredo — tudo se liga.

Essa mesma estética vinha ganhando muita popularidade com os hipsters de 2010, a chegada dos filtros do Instagram que imitam câmeras analógicas, a volta das peças de roupas da moda dos anos 1980 e 1990 e o Tumblr como plataforma digital de escape dos adolescentes. Esses mídiuns, portanto, marcam toda uma geração que estava surgindo nessa década, anunciada pela volta de uma estética alternativa, vintage e meio depressiva.

Um pouco dessa estética alternativa, vintage e depressiva

O filme populariza o livro e veio em boa hora, porque consegue reunir essa comunidade discursiva que já vinha cultuando tais objetos, obras, bandas e autores, que passam a caracterizá-la — o que casa perfeitamente com a criação de um sentimento de identificação dos deslocados na cultura deslocada, a partir de mídiuns literários, audiovisuais e sonoros, que referenciam e alimentam essa imagem e identidade que a obra retrata, que contribuem para construir a atmosfera de refúgio nessa heterotopia que é a “ilha dos adolescentes desajustados”.

–– Acho que aqui caberia uma ótima reflexão sobre ethos discursivo e cenografia na obra… É difícil não mencionar esses estudos depois de conhecê-los, mas já que ainda não discutimos esses pontos nas aulas vou deixar para um momento futuro (numa Parte 2 dessa reflexão) uma possível análise sobre a imagem que As Vantagens de ser Invisível cria no discurso literário e a forma como ela é evocada no próprio objeto editorial, que inclusive ganhou nova edição em agosto de 2020. Até mais! ❤

***(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)

Referências:

MUSSALIM, F. Análise do Discurso Literário: o funcionamento da autoria epistolar de Mario de Andrade. Domínios da linguagem. Uberlândia, MG. vol 12, n1. Jan — mar, 2018. pp. 581–603.

DEBRAY, R. Manifestos midiológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

FOUCAULT, M. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: N-1, 2013. pp. 7-56.

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Bárbara Fragalle

Formada em Letras, sempre atrás de estudar e entender as práticas de escritas profissionais e os meios por onde elas operam e circulam