O mercado editorial, o mercado do livro

Bárbara Fragalle
6 min readOct 28, 2020

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Apesar de ser um objeto sofisticado tão reconhecido, no Brasil, só começamos a pensar e estudar o livro e o sistema que envolve sua produção e sua circulação muito recentemente. O final dos anos 1990 e início dos 2000 (e destaco o biênio 2003–2004), foi o período que marcou esse olhar dos brasileiros para o objeto livro e tudo o que ele envolve — a produção, a edição, a educação e por aí vai.

Esse olhar sobre a cultura livresca permitiu a criação de projetos sociais, leis de incentivo e programas de apoio à economia do livro que visavam aumentar o contato dos brasileiros com este objeto — ação de grande importância quando falamos sobre acesso à cultura, ao conhecimento e empoderamento da sociedade. Esse acesso se dá, não apenas na relação livro-leitor, mas também e principalmente, na forma como o livro será produzido, no sistema em que se estabelece sua produção e tudo o que envolve sua circulação. E aqui se mostra clara a importância de estudá-los, compreendê-los.

Falo, não apenas sobre objetivo do livro (ou de alguns livros, pois não são todos que têm essa função) de possibilitar conhecimento e abertura para outro(s) mundo(s), mas sobre a importância de pensar a produção do livro, a distribuição, seu mercado e as consequências que as novas tecnologias e as gigantes marcas trazem também para o momento atual, o qual anuncia mudanças que ainda procuramos compreender — sintoma dos dias atuais, é tudo muito novo e se transforma rapidamente.

Pensando no livro como mercadoria e no que tange o aspecto econômico e simbólico deste objeto cultural, Bourdieu, em seu texto Uma revolução conservadora na edição, produz um trabalho que coleta dados importantes sobre a produção do livro na França, e discute a difícil relação entre a arte e o dinheiro estabelecida na produção e venda de livros. O que se nota é a existência de um trabalho em constante debate para as concomitantes aproximação e libertação da ideia de que o livro é uma mercadoria, mas é uma mercadoria especial, com questões próprias a serem pensadas que cingem arte, engenho, tratamento, emoção e lucro, todos determinantes das estratégias editoriais.

O que interessa nessa dupla relação entre arte e dinheiro, é onde se diferenciam os ideais, propósitos e estratégias das grandes editoras (vinculadas aos grandes substratos da economia, detentores do capital econômico e seus fins comerciais) das pequenas editoras (independentes, que resistem e persistem com escolhas conscientes sobre cada projeto e objeto que edita, divulga e faz circular). É a diferença entre um universo que arrisca pouco e se garante e outro que arrisca muito e vive para as novas descobertas e para a sobrevivência da literatura como meio de construção do ser humano a partir dos saberes.

“É evidente que o bastião da resistência às forças do mercado está constituído, hoje, por esses pequenos editores que, enraizados numa tradição nacional de vanguardismo inseparavelmente literária e política (que se manifesta também no domínio do cinema), são os defensores dos autores e das literaturas experimentais de todos os países política ou literariamente dominados […]” (BOURDIEU, 2018, p. 244)

Com esses recentes aspectos, apesar de todos os esforços lá na década de 2000 quanto ao incentivo à leitura e à produção do livro, o que antes era ascensão, tornou-se outra coisa. Apesar da área editorial e do sistema literário passarem por constantes adaptações e readaptações, debates estão em curso, uniões e falas se posicionam como forma de garantir a sobrevivência da produção e da circulação do livro no Brasil e no mundo todo.

Resistência

Na procura por textos para embasar minha escrita, notei que a maioria dos meios falam sobre a “luta”, “guerra”, “batalha” das livrarias e editoras independentes no Brasil. Curioso pensar o quanto esse meio vem se modificando com a venda de diversas editoras tradicionais para empresas estrangeiras e o monopólio das grandes editoras em vender produtos com alta procura no mercado. Além disso, a cada dia cresce o império da Amazon que promete e cumpre entregas rápidas, preços baixos e facilitação na hora da compra — ações questionáveis, mas de difícil competição. Tudo isso abala a forma tradicional de se produzir e vender livros e vemos as grandes livrarias superstores como a Livraria Cultura e a Saraiva cada vez mais perto de fecharem definitivamente suas portas.

Nisso tudo não é de surpreender chamar as livrarias e editoras independentes de “guerreiras” que travam uma “batalha” num sistema, que resistem às influências mercadológicas do meio editorial e continuam buscando através da união liberdade, igualdade de expressão e linhas editoriais alinhadas com seus projetos iniciais.

“O livro é um vetor essencial da construção e difusão dos saberes, do desenvolvimento do espírito crítico e da construção do ser humano. Ele não é uma simples mercadoria. Como bem cultural, faz parte de uma economia específica e não deve ser submetido exclusivamente às leis do mercado. Sua concepção, produção e comercialização, no formato de papel ou digital, têm vocação para a longa duração; ele se dirige tanto para as gerações futuras quanto para as presentes” — Declaração Internacional dos Editores e Editoras Independentes, 2014.

Com essa união e um forte posicionamento para sustentar esta “batalha”, se discute a ideia da Bibliodiversidade, que consiste na defesa de uma diversidade cultural no meio do livro, ou seja, uma diversidade no que diz respeito à produção editorial que é ofertada aos leitores. Isto não quer dizer que é apenas uma busca por grande quantidade de títulos disponíveis no mercado — as grandes editoras garantem isso ao aceitar muitos “negócios” para vender –, há aqui uma busca por diversificar os discursos que chegam aos leitores em busca de uma pluralidade de ideias e histórias, afinal, livros são meios que portam discursos, que constroem experiências humanas e uma nação de leitores.

A pandemia

Ainda é difícil compreender os impactos da pandemia no meio editorial porque está em constante modificação conforme os meses estão passando — vivemos tempos loucos. No início houve muita especulação e uma nova batalha foi travada uma vez que o ritmo de publicação de livros teve que diminuir. A pandemia causou o fechamento das livrarias de rua e surgiu o negócio pela venda online, que era pouco acessado. Além disso, a restrição e insegurança financeira dos consumidores fez com que diminuíssem as compras. Como disse, o império da Amazon dá vantagens ao consumidor e dificulta mais a competição por parte das pequenas livrarias e, com isso, uma reação em cadeia aconteceu: o problema chegou nas editoras. Com isso, as editoras independentes foram tentando aumentar a venda direta com os consumidores, intensificando a divulgação, a comunicação e o contato direto com os leitores. Parece que, só agora, mesmo diante dos múltiplos desafios apresentados em 2020, o varejo de livros — que chegou a registrar perdas superiores a 45% — tem conseguido, no geral, se recuperar. Em setembro, o faturamento com a venda no varejo cresceu 10,6%.

A taxação dos livros

Ainda nessa luta: sobre este contexto é necessário pensar a recente proposta de taxação em 12% na reforma tributária apresentada pelo ministro da economia Paulo Guedes. Esta proposta dá adeus a uma lei que garantia a isenção da tributação sobre vendas e importações de livros — proposta pelo escritor Jorge Amado quando estava ao cargo de deputado federal na década de 1940 e garantida pela última Constituição e também pela Lei 10.865 exatamente do ano de 2004, como disse, importante momento para o livro no Brasil.

Essa taxação faria com que o preço dos livros suba uma vez que editoras já trabalham com poucas margens de lucro, sendo assim, os livros estariam mais caros, as editoras não ganhariam nada com isso e os leitores pagariam mais por objetos que já julgam caros. Enfim, nesse sentido há muito o que discutir sobre o que se tornou senso comum em dizer que livros são caros no Brasil — há controvérsias que explicam o que parece ser uma ilusão de ótica de que livros são caros.

Dessa forma, livros mais caros causam a queda das vendas, que enfraquece ainda mais as editoras independentes, dificultando novas publicações que busquem a bibliodiversidade, tão importante para gerar a reflexão sobre como o acesso ao conhecimento é indispensável a todos e não apenas à elite, como o ministro da economia argumentou. Livros são oportunidade de crescimento, ascensão, humanização e tratá-los apenas como objetos de luxo das classes mais abastadas é retirar sua importância cultural de transformação da sociedade.

**(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial, do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)

Referências:

BOURDIEU, Pierre. Uma revolução conservadora da edição. Política & Sociedade — Florianópolis — Vol. 17 — Nº 39 — Mai./Ago. de 2018. Trad. Luciana Salazar Salgado e José de Souza Muniz Jr. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2017v17n39p198/37845.

AIEI. Declaração internacional dos editores e editoras independentes 2014, para manter viva e fortalecer a bibliodiversidade. 2014. Disponível em: https://www.alliance-editeurs.org/IMG/pdf/declaracao_internacional_dos_editores_e_editoras_independentes_2014_brazil-3.pdf.

https://www.publishnews.com.br/materias/2020/10/19/globo-vai-a-justica-pedir-falencia-da-cultura

https://www.publishnews.com.br/materias/2020/08/10/saraiva-enfrenta-28-acoes-de-despejo-e-demitiu-quase-100-em-junho

https://www.publishnews.com.br/materias/2020/10/19/faturamento-com-a-venda-de-livros-no-varejo-cresce-106-em-setembro-aponta-gfk

https://www.comciencia.br/o-livro-custa-caro-reflexoes-sobre-preco-e-valor-do-livro/

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Bárbara Fragalle

Formada em Letras, sempre atrás de estudar e entender as práticas de escritas profissionais e os meios por onde elas operam e circulam