Interlíngua em Olhos D’água, de Conceição Evaristo

Bárbara Fragalle
5 min readDec 2, 2020

--

Editora Pallas / Conceição Evaristo

Quando falamos de literatura brasileira contemporânea Conceição Evaristo é um nome importante. A escritora, que é doutora na de área Literatura, é a segunda de 9 irmãos, nasceu em uma família pobre e viveu em uma comunidade na zona sul de Belo Horizonte. Sua escrita, marcada por essas vivências, chama o tempo todo para essa origem e sensibiliza o leitor sem que haja sentimentalismos ou idealizações. É verdade, dor e lembrança, é vulnerabilidade, pluralidade e universalidade ao mesmo tempo.

Em seu livro de contos, Olhos D’água, o foco está na população afro-brasileira marginalizada, que convive com a violência, a pobreza e a descriminação de gênero, raça e classe do dia a dia na cidade. Publicado pela Editora Pallas em 2014, Olhos D’água apresenta a realidade de vários personagens, em sua maioria mães, esposas, filhas, avós — pessoas reais, com lutas e dores reais.

A partir do conceito de Maingueneau sobre o primado do interdiscurso (1984, 2005), é possível afirmar que discursos são constituídos a partir da colisão de discursos outros (em concordância, discordância, em choque…), o que leva a refletir sobre como um enunciado nasce dessa relação entre mais de uma prática linguageira, que constitui, sobretudo, uma imagem de quem enuncia, seu ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2008). Sendo assim, a língua não é exterior e posterior à formulação de um algo a dizer: ela é constitutiva da formulação dos dizeres(SALGADO, 2010). A partir disso Maingueneau propõe a noção de Interlíngua (2002).

Com esse estudo, num olhar sobre o texto literário é possível identificar essa interação das línguas e de seus usos:

“em todo posicionamento, ao lado de investimentos em tais ou tais gêneros do interdiscurso, há também o investimento da interlíngua, por meio do qual uma obra se inscreve no espaço das práticas linguageiras e dos idiomas.” (MAINGUENEAU, 2002, s/p, apud SALGADO, 2010, s/p).

Um texto literário, portanto, constrói um enunciado que legitima sua forma de dizer por meio de sua própria constituição, tecida a partir de uma força numa totalidade que dialoga uma semântica global própria, num escavar de um “hiato irredutível com relação à língua materna” (MAINGUENEAU, 1995, p. 105, apud SALGADO, 2010, s/p) e também na relação que se fia com o leitor, a partir de suas vivências.

Na caracterização do texto literário como um discurso constituinte, que “configura-se como uma instância-limite, pois cria um mundo cujas fronteiras ele mesmo estabelece em seu curso, de modo que seja impossível dizer de onde ele vem.” (SALGADO, 2010), em Olhos D’água, a textualização da realidade de pobreza, violência e discriminação das populações afro-brasileiras marginalizadas, se constitui evocando uma posição num campo, que está no presente, mas que questiona o futuro e busca sempre o passado para se formar.

Há uma relação que se mescla, sem limites concretos, numa prática linguageira ligada a uma escrita ensaística, que costura o confronto com a violência e a pobreza, que retrata a realidade do presente, uma escrita que mantém uma dureza e uma frieza que sensibilizam, tecidas nas vidas das personagens que retrata milhões e uma só ao mesmo tempo:

“Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou numa dolorosa pergunta carregada de tom acusativo. […] Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe, aprendi a conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias.” (Olhos d’água — EVARISTO, 2014, p. 11).

Outra prática que se estabelece é uma poética, no que diz respeito a um uso metafórico das relações, características ou ações das personagens e que se funde na natureza cultural e religiosa de matriz africana, em seus objetos, personagens e características:

“E também, já naquela época eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias.” (Olhos d’água — EVARISTO, 2014, p. 12).

“A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.” (Olhos d’água — EVARISTO, 2014, p. 13).

“Quando a menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos. Há muito que em nossa vida tudo pitimbava. Os nossos dias passavam como um café sambango, ralo, frio e sem gosto.” (Ayoluwa, a alegria do nosso povo — EVARISTO, 2014, p. 69).

Revolvido, também, numa escrita em que conversa os pensamentos das personagens trazendo termos de uma linguagem coloquial, ou mesmo descrições marcadas pelo olhar simples, uso de palavrões e a adjetivação, remetendo à realidade da pobreza da qual retrata, tipo de escrita marcante no texto literário contemporâneo:

“Seria burro de assaltar um banco ali mesmo no bairro, tão perto dele? Fazia os seus serviços mais longe, e além do mais não gostava de assaltos a bancos. Já até participara de alguns, mas achava o servicinho sem graça.” (Ana Davenga — EVARISTO, 2014, p. 18).

“A vida é tanta amolação. A minha mãe ia e ia. Seguia amolando a gente com aquela cantiga besta, mas que me fazia feliz. Idago, meu irmão, não. Ele ficava puto e mandava a velha calar a boca. Puta ficava a mãe.” (A gente combinamos de não morrer — EVARISTO, 2014, p. 63).

O que se nota é a interlíngua numa construção ficcional pautada em práticas linguageiras diferentes que se costuram na tessitura do texto e reiteram essa unidade temática da autora. O encontro entre uma escrita ensaística que escancara uma realidade dura é mesclado numa escrita poética que se revela na relação entre o viver na pobreza e o medo acostumado da violência diária com as presentes características culturais e linguísticas de matriz africana, que retomam um passado e uma origem dando força e constituindo o viver das personagens. Tudo isso se encontra com uma descrição de pensamentos e falas de ordem coloquial, que remetem a maneiras de dizer do campo do qual se retrata. Com essa colcha de retalhos, o texto produz uma cenografia (MAINGUENEAU, 2001) que transporta o leitor a esse lugar — a comunidade pobre que convive com a violência, com a dor, com um passado marcante que origina e da força — e é assim que, pelo próprio enunciado, a maneira de dizer se legitima e se constitui.

**(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial, do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)

Referências e textos citados

EVARISTO, Conceição. Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.

MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.

__________. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.

__________. (1984) Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005.

__________.(1993) O contexto da obra literária enunciação, escritor, sociedade. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

MUSSALIM, F. Análise do discurso literário: campo discursivo e posicionamento na interlíngua [Anais ABRALIN, 2011 — pdf].

SALGADO, Luciana. A interlíngua de Atrás da Catedral de Ruão. In: Crítica & Companhia, Campinas/São Paulo, n. VI, 2010.

--

--

Bárbara Fragalle

Formada em Letras, sempre atrás de estudar e entender as práticas de escritas profissionais e os meios por onde elas operam e circulam