A autoria de Clarice Lispector e a republicação em seu centenário

Bárbara Fragalle
9 min readNov 17, 2020

--

Imagem: Victor Burton/Editora Rocco (https://www.rocco.com.br/especial/claricelispector/)

Em dezembro deste ano é comemorado o centenário de uma das mais famosas escritoras Brasileiras de todos os tempos. Tão famosa que é até difícil filtrar citações verdadeiras e falsas atribuídas a seu nome — e que ainda virou meme por conta disso. Falo de autoria por aqui a partir de um olhar sobre Clarice Lispector, a atualização de suas obras e como sua posição de autora está articulada em determinados campos.

Imagem: Facebook Artes Depressão

Dona de uma prosa poética intensa, Clarice é uma autora que atingiu grande reconhecimento popular no que diz respeito à receptividade dos brasileiros em relação à literatura brasileira (mesmo que nem todos tenham realmente a lido ou sejam fãs de sua escrita). Essa popularidade da autora no meio digital — maior do que os próprios escritos que a concedem esse título — se encontra com o lado intelectual e literário de suas obras consagradas e produz uma imagem que se filia na relação entre o mundo da internet e o mundo literário.

Parece que a internet pulverizou a escrita de Clarice com o compartilhamento de suas frases, e, de certa maneira, se criou uma imagem de autora brasileira que produz frases belas e motivacionais. No entanto, na maioria das vezes essas frases se descolam do contexto e da relação com suas obras e são atribuídas apenas e simplesmente com o nome da autora, muitas vezes se descolando, também, da veracidade de sua autoria, uma vez que frases do senso comum são atribuídas a Clarice Lispector — o que concede uma legitimação que provoca a propagação do compartilhamento dessas frases ordinárias.

No mundo literário, Clarice é reconhecida por sua escrita particular, marcada por uma intensidade que convida o leitor a revisitar-se em si mesmo mergulhando nas questões de personagens que se revelam intimamente — ler Clarice é uma experiência de investigação pessoal das sensações. O que proponho é observar como estas formas enunciativas do material literário de Clarice Lispector serão tomadas para a própria figuração de autora, visto que estas características enunciadas definirão uma situação paratópica de autor, bem como serão por ela definidas (SERRÃO, Maria. 2017, p. 48)

No meio editorial, a casa de suas publicações é uma das mais conhecidas editoras do Brasil, a editora Rocco, que publica grandes nomes internacionais populares como J. K Rowling e Margaret Atwood. Atualmente, Lispector é nome de peso no catálogo da Rocco, responsável pela produção de uma imagem que vincula o nome da editora ao nome da Clarice, que busca fundar-se como espaço de divulgação e exaltação da obra da queridinha e tão popular entre os brasileiros. O que noto é uma celebração dessa relação entre editora e a autora por parte da Rocco.

“Em 1998, a Rocco adquiriu os direitos de publicação da obra de Clarice Lispector, relançando todos os seus livros, inclusive os textos infantis e infantojuvenis, em um projeto especial que incluiu padronização gráfica e rigorosa revisão dos textos, baseada na primeira edição de cada título. Em dezembro de 2008, a editora deu início a um novo projeto de reedição dos livros de Clarice Lispector com novas capas, uma justa homenagem à autora de A hora da estrela e outros clássicos da literatura brasileira para celebrar os 10 anos da chegada de sua obra à Rocco.” — (https://www.rocco.com.br/autor/?cod=89)

Para este ano de centenário da autora, a Rocco está republicando suas obras novamente e com um novo projeto gráfico, investindo em objetos de colecionador:

“Toda a obra de Clarice está sendo reeditada desde novembro de 2019 e conta com um novo projeto gráfico tanto de capa quanto de miolo, assinado pelo prestigioso designer Victor Burton, detentor de uma dúzia de Prêmios Jabuti. Além disso, os livros serão enriquecidos com ensaios de importantes críticos e estudiosos, publicados como posfácio, em duas opções: brochuras e livros de capa dura.” — (https://www.rocco.com.br/autor/?cod=89fica para um próximo texto, mas olha aí a construção da legitimidade das obras da autora a partir do designer que caminha com a legitimidade do Prêmio Jabuti…)

Dentre as obras publicadas ao longo do ano pela Rocco (cada mês uma ou duas obras da autora são lançadas) estão uma compilação de todas as cartas, todos os contos, Outros escritos, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, A paixão segundo GH, A legião estrangeira, A descoberta do mundo, Laços de família, A maçã no escuro, Perto do coração selvagem, Para não esquecer, Felicidade clandestina, A cidade sitiada, O lustre e A hora da estrela. Como disse, parece muito importante para a editora que sejam publicadas novas edições comemorativas, sempre trazendo este nome da autora para o centro da promoção do seu catálogo. Além disso, anteriormente já foram feitas outras edições comemorativas como a de 40 anos de A hora da estrela e, ainda, a publicação de coletianeas, como As palavras e O tempo, feitas pelo curador Roberto Corrêa dos Santos. Sendo assim, a Rocco conseguiu, através de seus direitos, vincular sua imagem à imagem única da autora (a Rocco é conhecida por ser a casa de Clarice Lispector).

O que noto no texto da Rocco citado acima é também a menção de “enriquecer” as novas edições com “ensaios de importantes críticos e estudiosos”, aqui é visível a construção de uma rede de aparelhos que define posicionamentos dentro de um campo discursivo, criado a partir desses intérpretes e avaliadores:

“O primeiro plano citado, a rede de aparelhos, pode ser parafraseado como o agrupamento de fatores institucionais que possibilitam a constituição de escritores como figuras públicas por meio de mediadores (editores, livrarias…), intérpretes ou avaliadores (críticos, professores…) e cânons (que podem assumir a forma de manuais, antologias etc.). O campo é o plano de confrontos entre posicionamentos estéticos que intervém de maneira específica sobre línguas, gêneros discursivos e situações comunicacionais, como uma espécie de estrutura que assume uma dinâmica de harmonia instável. O arquivo, por fim, é definido por Maingueneau (2014) como o plano em que “se combinam intertexto e lendas” (p. 91), sendo, portanto, o plano em que as memórias e os imaginários não cessam de serem retrabalhados e atualizados, indiciando a “memória interna” da literatura.” (SERRÃO, Maria. 2017, p. 42)

O que noto é como por meio da internet e do mundo editorial, juntos, a construção da imagem de Clarice Lispector passou a atingir um nível mais sofisticado. No que diz respeito a esse arquivo, ao longo de todo o ano de 2020 a editora está fazendo um especial chamado #365DiasDeClarice, com postagens especiais, artes com frases soltas da autora que alimentam aquela forma de fazer Clarice viajar pela internet, mas atribuindo as frases a cada obra, se tornando um tipo de fonte segura e padronizada de citação para o compartilhamento. Além disso, a editora produz um “Podcast da Clarice”, que traz conversas sobre as obras da autora com críticos, professores e pesquisadores.

Imagens: Spotify Podcast da Clarice (editora Rocco) / Instagram @editorarocco

Clarice é queridinha por todos e a Rocco, principalmente neste ano, faz questão de afirmar esse lugar. Uma mitologia com o nome da autora é criada a partir deste lugar de grande escritora brasileira, de uma sensibilidade, de um discurso intenso e poético, da autora das belas frases (mas agora contextualizadas) — tudo isso é criado a partir do próprio discurso literário presente nas obras clariceanas. A editora consolida a figura pública da autora e a coloca como sujeito que responde por uma obra. O papel das editoras é essencial na construção da figura de um autor e na divulgação, distribuição e circulação do livro.

Sendo assim, o espaço canônico da obra de Clarice Lispector, realça as características estéticas e estruturais de suas produções em que aparecem os mundos ficcionais criados pela autora. Há a produção de um espaço associado, composto pelo conjunto de produções em que as instâncias pessoa, escritor e inscritor se envolvem umas com as outras o tempo todo — são, portanto, as entrevistas, os podcasts, as coletâneas, os ensaios de importantes críticos etc, espaços que regulam informações e criam uma identidade da autora.

Especial Clarice Lispector

Nesse sentido, a editora Rocco criou uma página especialmente dedicada à Clarice Lispector e existe nela uma produção sobre o lugar de autoria que chama a atenção. A página se divide na mostra do catálogo das obras, antologias e coletâneas de Clarice, que leva o usuário até a compra no site da Amazon:

Imagem: https://www.rocco.com.br/especial/claricelispector/

Depois, há uma seção que fala sobre a personalidade da autora através de seus escritos, “Clarice por Clarice”; nesta página é feita uma escolha de determinados textos que, juntos, produzem uma personalidade da autora: “O temperamento impulsivo”, “Lúcida em excesso”, “Ideal de vida”, “A certeza do divino”, “A importância da maternidade” — é interessante como a junção destes escritos de Clarice (organizados por alguém que não a própria autora) produz uma imagem de quem era Clarice:

Imagem: https://www.rocco.com.br/especial/claricelispector/

Numa terceira seção da página foi feita uma linha do tempo com momentos importantes da vida da autora, seu nascimento, a mudança da família para o Brasil, o casamento e os filhos, compondo o perfil da pessoa biográfica:

Imagem: https://www.rocco.com.br/especial/claricelispector/

Abaixo dessa linha do tempo há um espaço dedicado às famosas entrevistas com a autora, artigos, o podcast já comentado por aqui e os posts do blog da Rocco relacionados à Clarice Lispector:

O que se nota é a construção de uma autoria, de uma imagem, de uma personalidade na condição de pessoa e escritora por meio do inscritor. Conforme Maingueneau (2014), abordar os mídiuns por esse viés nos leva a compreender que todo gênero do discurso implica um dado dispositivo material de comunicação, revelando que é “inegável que as mediações materiais não vem acrescentar-se ao texto como circunstâncias contingentes, mas em vez disso intervêm na própria constituição da sua “mensagem”(2014, p. 213).

Assim, o sujeito considerado “autor”, no caso deste texto, a definição de Clarice Lispector como autora é produzida na relação de comportamentos que se associam a essa condição de autora, que é produto de uma rede de aparelhos em determinados campos e com a construção de um arquivo do qual seus próprios escritos são matriz. Dessa maneira, essa relação de produção em si mesma direciona a um “quase lugar”, a paratopia criadora, que está dada de maneira externa à obra, sempre ao seu lado.

“A obra não é uma representação, uma organização de “conteúdos” que permita exprimir de maneira mais ou menos oblíqua, dores e júbilos, ideologias ou mentalidades, em suma, qualquer instância já existente, da mesma maneira como não é um universo paralelo ou autônomo. A paratopia do escritor, na qualidade de condição da enunciação, também é seu produto; é por meio da paratopia que a obra pode vir à existência, mas é também essa paratopia que a obra deve construir em seu próprio desenvolvimento.” (MAINGUENEAU. 2014, p. 119)

A literatura está, portanto, associada a uma legitimação que ela mesma cria e configura um mundo através da remissão ao espaço que possibilita sua enunciação.

Enfim, este é apenas um olhar para o que está sendo produzido atualmente sobre Clarice, partindo dessa perspectiva de uma necessidade de colocar a personalidade da autora como centro (talvez por sua obra ser tão íntima) da construção de uma identidade atrelada à editora que tem os direitos de publicação de suas obras, como forma de garantir e atualizar essas obras com suas novas publicações a partir do reconhecimento popular que a autora tem. Acho que é algo que vale a pena parar mais para observar e acompanhar.

Imagem: TV Cultura, programa Panorama entrevista Clarice Lispector

**(Reflexões sobre a disciplina Literatura e Mercado Editorial, do PPGLIT/PPGL UFSCar, 2020)

Referências:

https://www.rocco.com.br/autor/?cod=89

https://www.rocco.com.br/especial/claricelispector/

https://www.rocco.com.br/admin/Arquivos/ArquivoMidia/Clarice%20na%20Cabeceira%20Romance%20A%20Tarde%20Salvador.pdf

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

SERRÃO, Maria. O processo de constituição do livro Dois Irmãos: uma análise da paratopia criadora de Milton Hatoum. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/8910/DissCMSP.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

--

--

Bárbara Fragalle

Formada em Letras, sempre atrás de estudar e entender as práticas de escritas profissionais e os meios por onde elas operam e circulam